Doações à Notre-Dame e ao Museu Nacional

*Adm. Wagner Siqueira

Os trágicos incêndios da Catedral de Notre-Dame de Paris e do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, aguçaram ainda mais no brasileiro o que Nelson Rodrigues chamava de “Síndrome do Cachorro Vira-lata”: um sentimento de mal-estar, de constrangimento, de vergonha; uma sensação incômoda de inferioridade e de admiração – até de inveja – do brasileiro em relação ao estrangeiro.

Enquanto o fogo ardia – ainda crepitava no telhado acima da nave central da Notre-Dame, os grandes empresários e milionários franceses já anunciavam doações de cifras fantásticas para a reconstrução da Igreja.

No Brasil, o incêndio do Museu Nacional, em setembro do ano passado, não foi até agora objeto de quaisquer doações minimamente significativas. Por que será? Ah, já sei! Lá na França, as doações serão efetivamente aplicadas na restauração da Notre-Dame, enquanto aqui no Brasil ninguém sabe o que vão fazer com essas doações.

Será só isso? Claro que não! Ah, já sei! A França é um país rico, cheio de empresários endinheirados, enquanto no Brasil não há tantos milionários dispostos a doar. Eis aí a faceta dissimulada de uma das 10 maiores economias do planeta posando de “País dos Coitadinhos”, com o “vitimismo dos derrotados”, na expressão absoluta da “Síndrome do Cachorro Vira-Lata”!

Será só isso? Claro que não! Ah, então, já sei! O empresário brasileiro é mesquinho, egoísta, só pensa em si, jamais pensa no Brasil e em seu povo. O empresário francês, ao contrário, é generoso com o país, pensa e adora a sua cultura, é patriota, ama a França. Faz por ela qualquer sacrifício, principalmente doações milionárias para reconstruir um de seus símbolos nacionais. Os empresários franceses e brasileiros não são diferentes! São iguais, de mesma natureza. Atuam sempre na busca de realização de seu interesse, o lucro! Melhor ainda se na realização de seu interesse ele consiga associar algum ato de benemerência que lhe garanta prestígio e reconhecimento. É a markética: a relação promíscua entre o marketing e a ética!

Por que, então, a doação não se faz no Brasil com a facilidade da França? Vejamos, por exemplo, o caso concreto de Dona Lilly, brasileira, milionária, herdeira do Banco Safra. Doou milhões de euros para a restauração da Catedral de Notre-Dame de Paris e nada para o Museu Nacional. Por que? Insensibilidade? Falta de patriotismo? Claro que não!

A doação no Brasil não se faz por culpa única e exclusiva da nossa burocracia, por conta de uma legislação e de processos administrativos anacrônicos, produzidos por burocratas insensíveis, reacionários e obsoletos. É a pata do Estado brasileiro que impede a doação.

Vamos ver como ilustração o caso de Dona Lilly: se ela doou 100 milhões de euros para Notre-Dame, ela abate no imposto de renda francês 60% da doação, ou seja, 60 milhões de euros. No Brasil, no máximo, ela abateria 8%. E ainda estaria sujeita a ser pega na malha fina.

Ademais, para doar para o Museu Nacional ela teria de se submeter a uma triste peregrinação pelos desvios de nossa burocracia. Primeiro: aprovação de sua doação pelo Conselho Diretor do Museu Nacional. Segundo, pelo colendo colegiado diretor da Fundação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, instituição a qual o museu se vincula. E bota tempo nisso! Não há doador que não desista!

Se Dona Lilly quisesse colocar uma simples plaquinha, por exemplo, em local próprio, como costumeiramente se faz nesses casos, em contrapartida da doação feita pela recuperação do Museu. Aí, tudo – rigorosamente tudo – estará ainda mais complicado: não pode doar direto. Tem de fazer licitação para doar porque terá contrapartida, ou seja, colocar a plaquinha. E muito mais ainda: terá de prestar contas e ser fiscalizada pelo Ministério Público Federal, com suas ações de improbidade administrativa; pelo TCU, com seus acórdãos com aplicação de multas e de sanções; pela Controladoria Geral da União, com seus pareceres contrários por conta da contrapartida em que há riscos de desvios de conduta.

As coisas ficariam bem mais emaranhadas se Dona Lilly resolvesse não mais doar em espécie, mas diretamente através de bens ou serviços. Além de toda a peregrinação burocrática a que já me referi, ela teria de recolher ao Tesouro: IPI, ICMS, PIS e Cofins pelo valor doado ao Museu Nacional em bens ou serviços.

Se Dona Lilly quiser se enrolar ainda mais, imagine que ela resolva fazer a doação ao Museu Nacional através da Lei Rouanet. Aí se chega ao paroxismo do absurdo burocrático! Só poderia fazer isso se houvesse um edital específico definido pelos órgãos próprios de cultura do governo abrindo a possibilidade de doações.

Por último, não importa o caminho que Dona Lilly tivesse escolhido para fazer a doação ao Museu Nacional, se a Polícia Federal, o Ministério Público, o TCU, a Receita Federal, a CGU ou a AGU entenderem que há desvio de finalidade ou evasão fiscal na doação, ela se sujeitará ainda a um processo criminal e correrá o risco de ser condenada e presa por ter ousado doar dinheiro, bens ou serviços ao governo brasileiro.

Darwin tinha razão ao visitar o Brasil em direção às Ilhas Galápagos de onde extraiu a teoria das “Origens das Espécies”. Ele disse em texto livre: somente a beleza da fauna e da flora brasileira me fazem suportar a arrogância e a burrice do burocrata brasileiro.

O empresário rico do Brasil não doa não porque não queira, mas porque não pode diante de tantos entraves. Afinal, ele também valoriza a markética: os amores incestuosos entre o marketing e a ética.

*Adm. Wagner Siqueira é conselheiro federal pelo Rio de Janeiro e diretor-geral da UCAdm

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