Semana de 4 dias no Brasil: sobre o que precisamos conversar antes?

No segundo semestre de 2023, teve início no Brasil o projeto da “Semana de 4 dias”, promovido pela organização internacional “4 Day Week”.

De acordo com a descrição do projeto, “o piloto da jornada de 4 dias permite, com menos tempo de trabalho, obtermos os mesmos resultados em produtividade e diversos outros ganhos. As empresas que fizeram a transição para uma semana de trabalho de 32 horas percebem aumentos na produtividade, maior atração e retenção de talentos, envolvimento mais profundo do cliente e melhor saúde, bem-estar e felicidade dos colaboradores. É um projeto com foco inicial no aumento de produtividade, mas que acaba resultando em ganhos para os indivíduos, suas famílias e para todos nós como sociedade. O modelo adotado é o 100–80–100: 100% de pagamento do salário, trabalhando 80% do tempo e mantendo 100% da produtividade”.

Ainda de acordo com o site da “4 Day Week”, os benefícios do projeto no Reino Unido geraram os seguintes números:

· 2900 colaboradores de 61 empresas;

· 92% das empresas continuarão com semana 4 dias;

· 39% dos colaboradores se sentiram menos estressados;

· 71% reduziram sintomas de burnout;

· 54% acharam mais fácil conciliar vida pessoal e profissional;

· Comparando com período similar nos anos anteriores, a receita aumentou em média 35%;

· Turnover reduziu 57% no período do piloto;

· 15% dos colaboradores participantes disseram que nenhum aumento de salário os faria voltar à semana de 5 dias.

A proposta do piloto considera a eliminação de 8h semanais em 3 possibilidades: folga completa na segunda-feira, folga completa na sexta-feira ou distribuição das 32h nos 5 dias da semana. Uma proposta inegavelmente tentadora.

Contudo, no contexto brasileiro, precisamos conversar sobre algumas questões antes de nos seduzirmos com os encantos dos números e das promessas.

No que se refere às questões legais, especialistas em Direito do Trabalho afirmam que não há impedimentos à nova prática, uma vez que a CLT delimita uma carga horária máxima por semana (e não mínima) e proíbe a redução de salário, pontos estes não afetados com o projeto da semana de 4 dias. Contudo, há uma estatística do judiciário sobre a qual precisamos nos debruçar.

De acordo com o Relatório Geral da Justiça do Trabalho, publicado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), em 2022 as horas extras estão entre os cinco maiores assuntos recorrentes dos processos trabalhistas em 9 das 24 regiões judiciárias. As horas extras ocupam o 1º lugar no Paraná e em Mato Grosso do Sul; o 2º lugar no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul e em Pernambuco; o 3º lugar em São Paulo e em Minas Gerais; o 4º lugar no Espírito Santo; e o 5º lugar especificamente em Campinas/SP. Isso significa que em 34% das regiões judiciárias do país as horas extras representam um dos maiores pleitos trabalhistas.

Indo além, ainda segundo o próprio indicador do TST, até julho de 2023 as horas extras já ocupam o 1º lugar no ranking dos assuntos mais recorrentes na justiça do trabalho em geral. É claro que se deve ponderar quais casos seriam deferidos ou não, mas dada a vivência no mercado de trabalho, não é incomum percebermos que este é de fato um problema crônico de gestão nas mais diversas realidades organizacionais e que nem todos os trabalhadores o levam até a uma reivindicação no judiciário.

Outra questão a se considerar é que o setor de serviços concentra a maior parcela das empresas no Brasil, com 11.317.974 registros até setembro de 2023, de acordo com o Data Sebrae, seguido pelo setor do comércio, com 7.029.242 registros, setores que mais empregam, mas que devem ter a menor possibilidade de adoção da semana de 4 dias, dada a alta concentração de atividades operacionais de atendimento ao público e backoffice. Olhando para os portes, excluindo os Microempreendedores Individuais (MEI), que correspondem a 55% dos CNPJs no país, temos as Microempresas (ME) e as Empresas de Pequeno Porte (EPP) com a maior parcela, juntas com 35% do mercado, o que nos dá uma dimensão das condições de operação e das carências de recursos.

No que se refere às práticas de RH, a decisão sobre quais funções são passíveis de adoção da semana de 4 dias passa por um tema básico, mas extremamente sensível: a existência da descrição de cargos.

Tudo na gestão de pessoas tem como ponto de partida a descrição de um cargo, uma vez que é o registro que reúne dados sobre o conteúdo e sobre o perfil do ocupante para aquela função. Com a inexistência da descrição do cargo (e ainda sem considerar a exigência de que ela tenha sido bem feita), não temos a linha pontilhada sobre a qual podemos decidir estrategicamente se a adoção de uma semana de 4 dias é eficiente ou não. Falando empiricamente, quantas empresas você conhece que possuem a descrição de todos os seus cargos?

Com base nestas ponderações bem introdutórias, observamos o seguinte: estamos discutindo a adoção da semana de 4 dias em um cenário em que as horas extras representam um dos maiores problemas trabalhistas do Brasil, país que tem em sua maioria pequenos negócios, que são conhecidamente organizações que lutam para sobreviver, e onde predominam atividades econômicas de serviços e comércio, essencialmente operacionais e de backoffice, com potencial inexistência de descrição de cargos para decisões estratégicas. Portanto, a pergunta que fica é: semana de 4 dias para quem?

É possível supor que médias e grandes empresas, que detém maiores condições operacionais e de recursos, sejam a amostra mais provável desta nova modalidade de gestão. Mas, isso nem de longe é capaz de representar a realidade do trabalho no país e de suas mazelas a serem tratadas, sobretudo quando falamos em investir em “aumentos na produtividade, maior atração e retenção de talentos, envolvimento mais profundo do cliente e melhor saúde, bem-estar e felicidade dos colaboradores”, conforme preconiza o projeto da semana de 4 dias.

É preciso muita cautela nesta discussão ao se notar a possível elitização que esta modalidade de gestão pode promover, ampliando ainda mais os privilégios que funções mais qualificadas têm frente àquelas mais operacionais e mais volumosas no país, e que representam mais fielmente a realidade de trabalho a ser enfrentada pelos gestores.

Talvez devêssemos estar mais preocupados em promover boas práticas de RH que aperfeiçoem a gestão de processos nas empresas, que favoreçam o cumprimento adequado da carga horária de trabalho, tanto na intensidade como na duração, e que preservem efetivamente a saúde mental dos trabalhadores.

Ao discutirmos a semana de 4 dias como uma nova fórmula mágica na gestão de pessoas, tenho a impressão de que estamos mais preocupados em afirmar que mudar o tempo do jogo traz mais qualidade do que tratar do básico sobre a parte técnica do clube e do time.

Que estas reflexões nos ajudem a avançar em direção àquilo que efetivamente traga mudanças positivas e estruturais no mercado de trabalho.

Citações feitas neste texto:

TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO (TST). Relatório Geral da Justiça do Trabalho. 2022. Disponível em <https://www.tst.jus.br/documents/18640430/24374464/RGJT.pdf/f65f082d-4765-50bf-3675-e6f352d7b500?t=1688126789237>

DATA SEBRAE. Perfil de empresas. Disponível em < https://datasebraeindicadores.sebrae.com.br/resources/sites/data-sebrae/data-sebrae.html#/Empresas>

*Adm. Wagner Salles é coordenador da Comissão Especial de Recursos Humanos do CRA-RJ.

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