Rio de Janeiro – Rocinha

Em novo artigo, presidente do CFA, Adm. Wagner Siqueira, fala sobre o espetáculo da crise da segurança pública

Os últimos acontecimentos, ocorridos do dia 21/09/2017 até o presente momento na localidade da Rocinha, Cidade do Rio de Janeiro deixaram a população estarrecida diante da violência. Porém, para nós, Administradores, o que mais nos assustou foi o nível de degradação atual da gestão pública no Estado do Rio de Janeiro.

Criminosos com grande liberdade de movimentação, circulando com armas de alto poder ofensivo; tiroteios intensos entre os marginais; comércio, postos de saúde, escolas e universidades fechadas; pessoas no chão buscando a proteção possível; total omissão das forças policiais; tudo apresentado na mídia nos plantões de notícias,  deixando-nos cada vez mais estarrecidos.

A reação da população é de incredulidade, insegurança e revolta com os governantes e a polícia. Nós, Administradores, nos perguntávamos até onde podem ir as consequências da gestão pública irresponsável ou incompetente pela qual este país vem passando. O favorecimento de apadrinhados, os desvios de recursos, os gastos acima dos limites legais e a contratação de obras inúteis são um resultado explícito da gestão pública de baixa qualidade, sem controles adequados e sem compromisso ético com o interesse público.

Segurança Pública é dever de Estado. Não deve ficar refém de governos passageiros, irresponsáveis ou incompetentes. Há de existir continuidade no seu planejamento e nas suas ações. As adequadas condições de segurança pública são a base de todo o desenvolvimento econômico e social para a sociedade. São o elemento fundamental, o requisito indispensável para que as organizações públicas e privadas cumpram sua missão, se desenvolvam e contribuam para a paz e a prosperidade da sociedade.

A Segurança Pública não pode ser mais administrada da forma como vem sendo há décadas no Brasil, com sucessivas omissões em todos os níveis de governo, uma histórica desarticulação entre os órgãos envolvidos e sérios problemas de governança, trazendo resultados dramáticos como 58 mil homicídios no Brasil em 2015.

Isto é uma situação de calamidade, barbárie instalada, um fracasso das organizações de segurança pública. Um fracasso dos governos. Um fracasso para a sociedade. É um problema grave de gestão pública, que envolve sérios custos para a economia do país. O 33º Prêmio de Economia do BNDES em 2014, cujo vencedor foi o economista Daniel Ricardo de Castro Cerqueira com sua tese de Doutorado PUC-RIO, apresenta uma estimativa dos custos da violência que chega a 6,08% do PIB brasileiro. Uma tragédia gerada por uma modelo de gestão pública defasado da realidade.

A má gestão pública é cara.

É tão claro para a população que, sem as condições adequadas da segurança pública, nada prospera, nada frutifica, nada se desenvolve. É a desordem, a barbárie, o caos social. Ter segurança pública confiável e adequada é uma condição básica para o exercício da cidadania e desenvolvimento econômico em qualquer sociedade democrática.

Os últimos fatos na Rocinha vieram, lamentavelmente, confirmar a degradação da qualidade da gestão em relação à segurança pública. A incapacidade do governo do Estado do Rio de Janeiro, que ao longo dos últimos anos tem sido inversamente proporcional aos recursos financeiros consumidos, não é um fato isolado da realidade de outros estados.  Teriam os descalabros na gestão financeira e administrativa estadual dos últimos 10 anos agravado ainda mais esse cenário?

Às vezes, achamos que tudo poderia ser consequência do despreparo dos gestores, outras vezes que é fruto de incompetência técnica e política do governo e até achamos que poderia ser fruto do descaso para com a população. Com os fatos recentes, forma-se a convicção de que são todos este fatores juntos que produzem os resultados presenciados na Rocinha e em outras localidades.

Os argumentos de que tudo é consequência da crise econômico-financeira, política, ética, ou da crise moral não justificam os fracassos, pois não são uma prerrogativa do Estado do Rio de Janeiro. Salvo raras exceções, todos os demais estados da Federação estão com dificuldades. Além disso, a má qualidade dos serviços da segurança pública não é fato novo. A população tem plena consciência do baixo nível da prestação de serviços policiais em nosso Estado.

Como Administradores, insistimos em reforçar que a segurança pública deve ser analisada, estudada e administrada com uma visão sistêmica, capaz de compreender as interligações entre os componentes do sistema tais como: as organizações policiais, o Ministério Público, as varas criminais e o sistema penitenciário. Todos os esforços e recursos utilizados na segurança pública sem uma visão sistêmica serão desperdiçados em sua maior parte, por conta da desagregação das atividades realizadas por cada um dos componentes do sistema.

Ficam claras as disfunções no sistema de segurança pública decorrentes da falta de integração e interatividade das organizações que o compõem. Na realidade, essas organizações restringem seus relacionamentos ao nível apenas do formal e legal, enquanto que, raras vezes, ousaram estabelecer seu relacionamento como organizações pertencentes ao mesmo sistema organizacional. As organizações integrantes do sistema de segurança pública devem ser vistas, sob o ponto de vista de gestão, como organizações públicas prestadoras de serviços de segurança. Com esta simples mudança de foco, imediatamente novos parâmetros na gestão da segurança pública surgem sem qualquer estranheza, tais como: desempenho, qualidade, ética, controle, resultados, eficiência, eficácia, metas, objetivos, comprometimento, formação e treinamento. Ou seja, parâmetros usuais para desenvolvimento organizacional e aferição de desempenho de empresas públicas ou privadas, adotados em países mais desenvolvidos.

Atuar na segurança pública de forma tacanha e isolada da realidade econômica e social, sem exigências objetivas sobre seu desempenho e os resultados para a população, só leva a desperdícios e prejuízos para a sociedade.

São várias as disfunções que podem ser corrigidas, como por exemplo:

  1. compra de armamentos e munição desconectada com as reais necessidades, em virtude de falhas no sistema de controles;
  2. cabines blindadas compradas e abandonadas por inadequação ao serviço policial;
  3. viaturas, armamento e equipamentos desativados por falta de manutenção, causando sérios danos ao planejamento operacional;
  4. delegacias policiais sem manutenção, comprometendo seriamente a integridade e a qualidade da entrada de dados criminais e inteligência no sistema;
  5. centros operacionais com tecnologia de ponta, mas subutilizados;
  6. duplicidade de procedimentos por conta da burocracia;
  7. ausência de uma política salarial para as forças de segurança pública, com o intuito de evitar a utilização de artifícios remuneratórios como abonos, bônus e gratificações;
  8. más condições de habitabilidade e serviços, promovendo o fortalecimento de grupos criminosos dentro de unidades prisional;
  9. formação de curta duração e inadequada ao exercício do trabalho policial;
  10. treinamento continuado de policiais insuficiente ou inexistente;
  11. burocracia inútil e dispendiosa nas organizações de todo o sistema de segurança pública;
  12. deficiência nos controles de performance nas organizações do sistema de segurança pública.

Os analistas, diante dos acontecimentos da Rocinha, foram unânimes ao falar da necessidade do trabalho de inteligência na segurança pública, mas esqueceram que existe há anos na estrutura da Secretaria de Estado de Segurança uma escola de inteligência para formar quadros de especialistas segundo determinada doutrina de inteligência que, pelos resultados que ora vimos, parece que esta escola de inteligência é mais uma disfunção do sistema de segurança pública estadual.

Sempre é bom ressaltar que ao nos depararmos com crises é necessário e básico um maior empenho e presença dos dirigentes responsáveis pelas decisões, para racionalizar o uso dos recursos  de qualquer natureza e estimular a articulação e integração entre os órgão do sistema organizacional. É também indispensável facilitar o fluxo de informações entre os agentes de decisão, para permitir decisões rápidas e seguras e ter transparência nas decisões e ações para facilitar a compreensão dos cidadãos sobre os avanços e dificuldades.

A crise da segurança pública não é nova. Ela existe há décadas.

O que é novo, o que se renova é a sua forma, a sua dinâmica, seus personagens e recursos. E o que parece que precisa mudar são as soluções repetitivas e antigas que não dão mais resultados. Não basta mais comprar armas, viaturas e uniformes para demonstrar que o governo está agindo. Tudo mudou. A sociedade mudou, a cultura mudou, os recursos e a tecnologia mudaram, consequentemente, a criminalidade também mudou. E as organizações policiais, mudaram? O sistema de segurança pública mudou? E os serviços de inteligência? O modelo de gestão da segurança pública mudou?

Enfim, as crises podem ser desafiadoras e difíceis,  porém podem trazer soluções mais inteligentes e melhores. Podem ser difíceis, mas podem ser a grande oportunidade para se quebrarem tabus e preconceitos e melhorar de forma consistente a qualidade dos serviços públicos à população.

Lamentamos profundamente como Administradores a dificuldade do governo do Estado do Rio de Janeiro em relação ao controle da criminalidade, pois o uso das Forças Armadas na segurança pública não será o caminho da solução do problema. Será mais um paliativo para contornar a profunda crise de gestão do setor público. É só imaginarmos mais estados com crise semelhante à do Rio de Janeiro, simultaneamente. Não há como as Força Armadas resolverem. E não fazemos referência às limitações legais no papel das Forças Armadas.

Quem deve resolver a crise de segurança pública no Rio de Janeiro são as forças policiais do Estado, em trabalho conjunto com o Ministério Público, o Poder Judiciário e o órgão de administração penitenciária.

É bem verdade que o problema está na crise de gestão do setor público brasileiro, que atinge todos os estados da federação e o Governo Federal. É necessária uma ação mais estratégica, com planejamento de longo prazo, com descentralização de recursos e integração das organizações de segurança pública que faça com que o fato de 58 mil pessoas serem assassinadas anualmente seja visto por todos como uma aberração, um descalabro, uma total incompetência dos governantes na gestão dos problemas que mais afetam a população brasileira.

Talvez concentrar a segurança pública como área estratégica para o desenvolvimento econômico seja o primeiro passo para demonstrar o mínimo de competência dos gestores públicos brasileiros.

Adm. Wagner Siqueira
Presidente do Conselho Federal de Administração

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