Millennials: uma geração moral?
A verdade é que o bem, no sentido moral, e os bens, no sentido econômico, nem sempre se dão bem, correlacionam-se adequadamente, têm compatibilidade no cotidiano da vida em sociedade. Vivemos hoje o discurso moral do “politicamente correto”. Ontem, a utopia política fazia as vezes da moral. Hoje, a moral substitui a utopia política.
A partir dos anos 1980, a moral se instalou no centro dos debates no mundo das organizações e no universo da sociedade. Presenciamos um retorno da moral no sentido do discurso. Não é que as pessoas sejam hoje mais virtuosas do que antes. Fala-se muito de moral, é o discurso da moda, mas nunca se ressentiu tanto a ausência da moral e da ética nas relações entre as pessoas.
A geração baby-boomers, dos anos dourados, dos idos de 1968, vivia muito mais o imoralismo, a libertação geral e irrestrita explicitada pelas palavras de ordens “é proibido proibir”, “sejamos responsáveis, peçamos o impossível”, ou “vivamos sem tempos mortos, desfrutemos sem limites”. Pensávamos em viver além do bem e do mal. Vivíamos a ideologia de tudo “política“. O apoliticismo era impensável. Tudo era política e a política era tudo. Desfrutávamos do ar de nosso tempo: a moral – repressora, castradora e culpabilizadora – parecia-nos imoral. A política a substituía em plenitude. A nossa geração de 68 vivia uma contradição em si: queríamos ser um Nietzsche de esquerda e um Marx imoralista.
Os millennials** hoje vivem outros tempos. A política não interessa mais a muita gente, menos ainda aos jovens. Quando falam de política é para debochar ou ridicularizá-la. Enquanto abandonam a política, empreendem um retorno à moral, agora rebatizada de direitos humanos, de humanismo, de solidariedade, de responsabilidade social, de proteção ao meio ambiente. A palavra moral é velha, arcaica, antiquada, mas nem por isso deixam de ser morais as novas acepções.
Hoje as personalidades que estão em primeiro lugar são Dom Helder; Betinho, certamente pela Campanha contra a Fome, não pela liderança política revolucionária da Ação Popular; Irmã Dulce; Gandhi; Frei Bento; Frei Rubião; e Chico Xavier.
Há 50 anos, contra a fome gritava-se pela revolução. Hoje, contra a miséria grita-se pelos programas assistenciais de governos, de empresas, de ONGs e das igrejas. Todos clamam pela ação humanitária. Diante dos problemas que são coletivos, sociais, conflituais – logo, políticos – a tendência é dar respostas individuais, morais, para não dizer até sentimentais e emocionais. Claro que todas são perfeitamente respeitáveis, nada tenho contra esses programas, mas, como é óbvio, eles são igualmente incapazes de resolver o problema.
Antes se pensava que a boa política era a única moral necessária. Para os jovens de hoje, a moral é que é tudo. E, assim, uma boa moral lhes parece ser a política suficiente e necessária.
É evidente que antes era um erro julgar que a política podia fazer as vezes da moral. Mas outro é o erro de hoje: acreditar que a moral – mesmo rebatizada de direitos humanos, de politicamente correto etc. – possa substituir a política.
Se os millennials contam com os programas sociais para acabar com a miséria, estão redondamente enganados. Se contam com o humanismo para substituir a política externa antirracista e os problemas de imigração, estão se iludindo mais ainda. A moral e a política são duas ordens distintas, ambas necessárias, mas que não podem ser confundidas sem comprometer o que cada uma delas tem em si de essencial. Necessitamos das duas, e da diferença entre elas. Estão em níveis e dimensões distintos. Cada uma pertence ao seu próprio domínio e têm as suas próprias limitações. Necessitamos de uma moral que não se reduza a uma política, mas necessitamos também de uma política que não se reduza a uma moral.
É na medida em que os jovens de hoje têm cada vez menos a sensação de poder influir coletivamente sobre seu destino comum – que é a verdadeira função da política – que eles tendem a encerrar-se no terreno dos valores morais.
Vivemos, assim, uma situação ambivalente: se por um lado saudamos os millennials porque empreendem um retorno à exigência moral ou humanista, por outro lamentamos que o façam em detrimento de toda e qualquer ação propriamente política.
O elo mais fraco no contexto brasileiro de hoje não é a moral/corrupção, como muitos creem, mas a política. Os bons sentimentos fazem sucesso, mas o desinteresse e o descaso pelas questões públicas são alarmantes. O apoliticismo humanista bem-pensante é o vazio da participação cidadã em nossa sociedade.
A geração de tudo política (baby-boomers, geração 68), seguida pela geração moral ou do tudo humanitário, começa agora a evoluir para tudo espiritual, ou seja, a busca pelo sentido da vida. Eis aí o drama de parte expressiva dos millennials hoje: não é passar de um santo para outro, é passar de uma questão para outra – é passar de uma questão essencialmente moral (o que você faz pelos mais necessitados) para uma questão essencialmente espiritual (qual o sentido de sua vida?) São duas questões ligadas porém distintas, mas que se interpenetram sem tocar no âmago da questão política que, o mais das vezes, as encerra e as operacionaliza ao nível da realidade do cotidiano da sociedade.
Toda a história da humanidade comprova que a transformação da sociedade é uma questão independente da espiritualidade. Transformar a sociedade também não é suficiente para o indivíduo transformar a si mesmo.
Assim como a política não substitui a sabedoria, como se julgava à época da Geração Anos Dourados, também a sabedoria, a espiritualidade e a moral não substituem a política. Toda monotemática é perigosa. O monotema “politicamente correto” implica substanciais riscos à sociedade pela sua despolitização. A Queda do Muro de Berlim e a desintegração do bloco soviético retiraram a alternativa comunista ao capitalismo, restando-nos apenas o protagonismo exclusivista da sociedade de mercado.
O que significa Bin Laden para o jovem ocidental? Uma opção moral, estritamente moral. O islamismo não condena a propriedade privada, o controle dos meios de produção, a sociedade de mercado, o trabalho assalariado e a mais valia, a expropriação, os expropriadores e os expropriados. Bin Laden não é uma alternativa social e econômica, é uma alternativa moral ao capitalismo para os jovens islamistas fanatizados. Ele simboliza outros valores, outros ideais ou normas, ou seja, uma outra moral e uma nova ética, e até mesmo uma outra civilização, mas não significa abalar ou querer substituir a sociedade de mercado.
Passar de Lenin para Bin Laden não é trocar de adversários. É passar de uma questão para outra, é passar da questão política – contra ou a favor do capitalismo – para a questão moral ou civilizatória, contrapondo os valores do Ocidente laico e liberal aos da teocracia islâmica.
Qual o valor de um barril de petróleo? A lei econômica da oferta e da procura o dirá, o que nada tem de moral. O capitalismo não precisa de um sentido moral e espiritual para funcionar. As pessoas sim precisam de um sentido moral para viver. E as civilizações também. Temos de dar sentido à nossa existência.
Antes, a contradição se dava contra uma perspectiva negativa representada pelo bloco soviético. Na sua ausência, a sociedade mundial há que buscar uma nova alternativa. Como não há, tem de encontrar em si mesma opções éticas, valores e mentalidade que lhe configurem uma certa opção moral. Esta é a sustentação, a fonte e origem do “politicamente correto”. O desmonte prático do socialismo real nos remete à dimensão moral.
O mundo ocidental vive um processo de laicização, de secularização ou de descristianização. Era este o processo apontado por Nietzsche ao final do Século XIX no que chamava a morte de Deus: “Deus está morto”, “Fomos nós que o matamos”. E se Deus não existe, então tudo é permitido, como destaca Dostoiévski, em ‘Crime e Castigo”. Na política, a opção jamais tem a ver com a luta entre o bem e o mal, mas com o preferível e o detestável, como nos ensina Raymond Aron. “O Ser e o Nada”, de Sartre, marca o existencialismo, doutrina segundo a qual a existência precede a essência, e, portanto, o homem se constrói pelos seus próprios atos. O homem é um gesto que se faz ou não se faz. Já Rosa de Luxemburgo, em sua acumulação capitalista, nos mostra que o sistema capitalista não consegue sobreviver sem subtrair forças e energias de economias não-capitalistas: ele só é capaz de avançar se existirem terras virgens à expansão e à exploração. O capitalismo é um sistema parasitário e, como todos os parasitas, só pode prosperar sugando sua alimentação do hospedeiro.
Diante de tantas complexidades e turbulências, os millennials tentam traçar sua trajetória pela opção moral, minimizando aspectos relevantes interpostos pelos limites da Ordem Técnico-Cientifica, que nos indica o ser ou não ser possível fazer; da Ordem Institucional-Legal, que nos diz o que é legalmente autorizado fazer ou não fazer; pela Ordem Moral, que nos dá a oposição entre o dever fazer e o não dever fazer, entre o bem e o mal, entre o permitido e o proibido pela nossa consciência; pela Ordem Ética, que se faz pelo amor ao próximo, amor à verdade, à liberdade do outro, à humanidade, o que julgo adequado para os outros; pela Ordem Espiritual, que constrange e limita todas as demais ordens já que funciona sob os postulados da fé e das crenças professadas por cada um.
Ao querer moralizar todas as dimensões da vida, os millennials balançam na corda bamba do equilibrista, já que entre o idealista sonhador e o fanático há apenas um passo. Querer transformar um ideal moral numa realidade por imposição totalitária conduz à tirania.
A felicidade e o bem-estar de milhões não podem ser aferidas numa escala única de valores. Dependem de uma miríade de coisas que lhes podem ser proporcionadas numa infinita variedade de combinações. Não é uma atitude racional acreditar que possa haver opinião majoritária ou consensual sobre todas as coisas. Inescapavelmente, terminaremos no moralismo, a perversão da moral.
*Adm. Wagner Siqueira é conselheiro federal pelo Rio de Janeiro e diretor-geral da Universidade Corporativa do Administrador
**Para melhor compreensão, também considero como Millennials os nascidos a partir de 1980, englobando o que se convencionou chamar de Geração Y e de Geração Z