A privatização da sociedade civil
As ONG´s sofrem crescente questionamento em todo o mundo. Mas, ao mesmo tempo, aumentam a sua importância e influência no conjunto da sociedade, no mundo das organizações, na vida política e comunitária, nos governos e na administração pública em geral.
Assumem-se como verdadeiras expressões da sociedade civil, as quais julgam legitimamente representar. Por demais atuantes, superativas, agem à revelia de uma enorme maioria silenciosa, que não necessariamente as aprova, mas que as permite exercer o papel de porta-voz da sociedade civil.
Em verdade, muitas desempenham atividades empresariais sob o biombo da dissimulação em simulacros de instituições filantrópicas e benemerentes; em contrapartida, muitas outras exercem essas funções com alta relevância e significância social. Muitas são sérias e contributivas, outras são verdadeiras máquinas de arrecadação, de enriquecimento de seus dirigentes, de fraude e de corrupção. Gozam de enorme prestígio na imprensa mundial, o que lhes possibilita obter financiamentos junto ao poder público e às organizações empresariais, em especial junto às macrocorporações multinacionais, para subsidiar e sustentar as suas atividades e programas.
O seu protagonismo e hiperatividade lhes garante a condição de “queridinhas” da mídia na sociedade do espetáculo. Os seus “quinze minutos de fama” se sucedem em manchetes que se renovam – e se repetem – sistemáticamente sempre sob a forma de denúncias e de escândalos. Alimentam-se e se fecundam no denuncismo e na extravagância de manifestações bizarras.
Todas essas circunstâncias são perfeitamente acompanhadas e compreendidas pelas macrocorporações empresariais. E não lhes são indiferentes. Pelo contrário, atuam deliberadamente para influir através das ONG´s nas maneiras de pensar, sentir e agir da sociedade civil. Ou seja: a ONG é o Cavalo de Tróia da organização multinacional na influenciação, direcionamento e ocupação da sociedade civil com vistas a privatizá-la a serviços de seus próprios interesses. É a usurpação da cidadania pelo capital privado.
A privatização da sociedade civil objetiva fazer com que o espírito crítico do cidadão se circunscreva a um pensamento dependente dos interesses das macrocorporações na sociedade de mercado.
Hoje as ONG´s mal conseguem livrar-se de seus maus usos, dos desvios de destino e de objetivos, das manipulações institucionais, e já são submetidas a um novo risco, que deve agravar ainda mais as suas vicissitudes e mazelas. Há uma clara, deliberada e intencional estratégia global dos mais proeminentes atores macrocorporativos que objetiva neutralizar as ONG´s por meio da privatização da sociedade civil.
Todo um contexto institucional-legal altamente favorável contribui para a implementação dessa estratégia sutil. O poder público é cada vez mais fragmentado. Perde espaços de soberania vis-à-vis à influência dos grandes agentes econômicos. Das cem maiores economias mundiais, cinqüenta e uma são organizações corporativas privadas.
A enorme capacidade que o alto interesse privado tem para agir nas sombras possibilita-lhe o desempenho de papel decisivo na condução da cena política e na gestão dos Estados.
A colonização pelo mercado da sociedade civil é bem mais recente, menos perceptível, e, portanto, muito mais difícil de condenar. E, assim, ela avança de forma sutil e dissimulada, reverberando manifestações e profissões de fé na necessidade de construção de um mundo melhor e da supremacia do bem comum, para o que o mundo empresarial se julga capaz de oferecer inequívoca contribuição, principalmente por meio de seus programas de responsabilidade social, de empresa cidadã, de ética empresarial e de desenvolvimento sustentável.
Assim, concomitantemente, os dirigentes das grandes corporações empresarias estabelecem cada vez maiores relações consensuais com o poder público e dominam os conselhos de administração das grandes ONG´s, principalmente as dedicadas à defesa dos direitos humanos e do meio-ambiente. Concretiza-se na prática do cotidiano, de forma insidiosa, a corrupção moral e o tráfico de influência tanto na gestão dos Estados quanto na das ONG´s, e, portanto, nas fontes e origens de formação de opinião da sociedade civil.
É evidente que seria um contra-senso pretender desqualificar sistematicamente quaisquer relações de parceria, de negociação e de entendimento que se institucionalizem entre as grandes corporações, o poder público e as ONG´s. Mas as estratégias determinadas e sofisticadas das organizações empresariais não podem ser nem diabolizadas nem subestimadas. Elas estão claramente em processo, não deixam de ser altamente complexas, difíceis de perceber, e bastante perigosas para a construção futura de uma sociedade mundial efetivamente democrática e justa. Têm objetivo bem claro: valorizar as parcerias e exibir uma tendência forçada em direção a uma pretensa globalização humanizada em todo o mundo como resultante da contribuição da aristocracia empresarial da sociedade de mercado. Pensam assim neutralizar a crítica e a ação política dos cidadãos contra as atividades empresariais não-sustentáveis em todo o mundo, e inibir o risco de ações judiciais reparadoras por parte das vítimas, humanas ou ambientais, que busquem ressarcimentos através dos canais institucionais do Estado.
O caráter incestuoso das relações nutridas entre as ONG´s e as organizações empresariais induzem a que muitos comportamentos não-sustentáveis, muitas vezes verdadeiros crimes, fiquem impunes e que muitas vítimas se calem. Os protagonistas da sociedade civil se tornam prisioneiros de um círculo de ferro do silêncio, da omissão e da cumplicidade.
Mais uma vez, a sociedade de mercado, agora em sua versão mais moderna e sedutora, consegue disseminar com muito talento e efetividade a idéia de que a regulação institucional-legal do mercado é o principal inimigo do lucro e, por conseqüência, do desenvolvimento e do bem-comum.
As ONG´s, e através delas a opinião pública, encantam-se com os compromissos éticos formulados pelas organizações empresariais, por seus códigos de ética generosos, e, assim, paulatinamente abandonam a luta de levar às barras dos Tribunais de Justiça em todo o mundo a busca por reparação das vítimas dos males provocados pela ação empresarial danosa. Abandonam a estratégia de luta política e judicial na ilusão de promover a gestão responsável das organizações empresariais em matéria dos direitos humanos, da cidadania republicana e da preservação ambiental. Passam a acreditar na auto-reforma e na automudança, na capacidade de autotransformação das organizações empresariais. Legitimam, participam e compartilham da crença e da esperança de que o capitalismo mundial tem capacidade de se auto-regenerar, de se autotransformar em direção à democracia política e econômica, numa construção evolutiva e serena, em bases voluntárias e consensuais, em harmonia com os cidadãos consumidores, contribuintes e eleitores. E, assim, baixam as armas, reduzem a sua capacidade de luta e de reivindicação, de protesto e de denúncia. Acabam também cooptadas e convertidas à ideologia da sociedade de mercado.
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