Entre a urgência e a espera: os limites éticos da regulação em saúde

Por mais que o Sistema Único de Saúde (SUS) seja reconhecido mundialmente por sua universalidade e abrangência, um de seus maiores desafios está na regulação do acesso aos serviços, especialmente os de alta complexidade. Esse gargalo afeta diretamente a vida da população, e a solução exige mais do que vontade política — requer gestão eficiente, cooperação intergovernamental e investimento estruturado.
A regulação é o mecanismo responsável por organizar a fila de acesso aos serviços de saúde, buscando garantir justiça e prioridade para os casos mais urgentes. Ela atua como ponte entre a necessidade do paciente e a oferta disponível, sendo realizada tanto pelo município quanto pelo estado, de acordo com a complexidade e a capacidade de atendimento.
No nível municipal, a regulação está mais voltada para atendimentos de média complexidade, como consultas especializadas e exames. Já no nível estadual, entram os casos de alta complexidade, que exigem internações hospitalares, cirurgias, unidades de terapia intensiva (UTIs), tratamentos oncológicos, entre outros. No entanto, essa divisão muitas vezes gera duplicidade de fluxos, sobreposição de responsabilidades e desarticulação entre as esferas, o que contribui para a lentidão do processo.
Os gestores de saúde convivem com essa realidade todos os dias. Eles sabem que o problema não está apenas na fila de espera — está na falta de leitos, na escassez de equipes multidisciplinares, na fragilidade das redes de referência e contrarreferência, e na ausência de um sistema de informação robusto e integrado. Muitos gestores se veem de mãos atadas diante da pressão da população e da ineficiência de um sistema que deveria ser ágil, especialmente quando vidas estão em risco.
A situação se agrava nos atendimentos de alta complexidade, onde o tempo é um fator decisivo. Não se pode esperar semanas por um leito de UTI ou por uma cirurgia cardíaca. A demora compromete o prognóstico do paciente, agrava doenças e, infelizmente, pode resultar em mortes evitáveis. Além da lentidão, outro fator agrava ainda mais a crise: a quebra da equidade no acesso ao sistema. Casos de pessoas que conseguem furar a fila por meio de influência política, favores pessoais ou pressão direta sobre os profissionais de saúde são mais comuns do que se imagina — e representam uma grave injustiça. Enquanto isso, pacientes sem voz, muitas vezes em situação de extrema vulnerabilidade, permanecem a guardando por meses um procedimento que poderia mudar ou salvar suas vidas.
Esse tipo de desvio compromete não só a transparência e a ética do processo, mas também desacredita a população na justiça do sistema público, gerando indignação e aprofundando as desigualdades. Apesar dos esforços pontuais de alguns estados e municípios para melhorar a regulação, ainda predomina um modelo burocrático, com falta de transparência e
baixa resolutividade. Em muitos casos, a única alternativa do cidadão é recorrer ao Ministério Público ou à Defensoria Pública para conseguir o tratamento que deveria ser assegurado pelo Estado.
Para mudar esse cenário, é preciso encarar a regulação como eixo estratégico da gestão em saúde, e não apenas como um setor técnico ou administrativo. É necessário:
• Investir em tecnologia da informação, com sistemas interligados e inteligência artificial para apoio à decisão;
• Ampliar a oferta de serviços especializados e leitos hospitalares, especialmente em regiões periféricas e menos desenvolvidas;
• Capacitar profissionais da regulação, garantindo análises criteriosas e humanizadas;
• Estabelecer protocolos claros de regulação entre municípios e estados, com fluxo único e responsabilidades definidas;
• Acompanhar e divulgar indicadores de desempenho da regulação, permitindo ajustes constantes e prestação de contas à sociedade;
• Coibir práticas indevidas e reforçar o compromisso ético dos profissionais e gestores com a equidade no acesso.
A regulação não pode ser vista como obstáculo, mas como ferramenta essencial para garantir acesso equitativo, atendimento eficiente e cuidado digno. O dilema ético entre a urgência e a espera precisa ser resolvido com responsabilidade técnica, empatia e justiça social. Enquanto o nó da regulação não for desatado — e a equidade realmente assegurada — a saúde pública continuará falhando justamente onde mais deveria funcionar: na hora de salvar vidas.
*Adm. Fatima Ribeiro é coordenadora da Comissão Especial em Administração de Serviços de Saúde do CRA-RJ.