Um Equívoco Ensinado

Um Equívoco Ensinado

Um Equívoco EnsinadoEm visitas às distintas IES, na condição de presidente do Conselho Regional de administração Rio de Janeiro (CRA-RJ), cada vez mais me espanto com a exacerbação do foco do ensino de Administração na assimilação acrítica de tecnologias e de ferramentas operacionais por parte do corpo discente. É como se fosse um fim em si mesmo. Praticamente uma exclusividade. Elas não são categorias de pensamento, são apenas instrumentais. Consiste na tentativa educacional de uso consciente e deliberado de um conjunto de conceitos e de sistemas operacionais cuja finalidade é levar os alunos a interpretarem e agirem na realidade organizacional na direção e no sentido que os agentes dominantes de mercado desejam. Elas são, repito, essencialmente instrumentais ou funcionais para o mercado. Não são substantivas, mas adjetivas e complementares, funcionais. E, assim, a racionalidade instrumental se transforma na racionalidade geral, indistinta, aplicada sempre a quaisquer situações em que se integram pessoas se relacionando com pessoas, por meio de diferentes usos de hierarquia, para a consecução de determinados objetivos.

Tal prática induz o aluno a se tornar um apêndice das tecnologias, numa consequente formação de atitudes de submissão comportamental, a despeito das diferentes realidades e circunstâncias organizacionais em que essas tecnologias e ferramentas se aplicam.

Este é um equívoco deformante fundamental na capacitação de quadros gerenciais competentes à gestão empresarial em quaisquer níveis de decisão. O técnico puro, no mundo de complexidades das organizações, torna-se um alienado com poder, por se comportar estritamente como se fosse um ser apenas racional, baseado em verdades tecnológicas e na assertividade de ferramentas gerenciais.

As organizações não são lógicas como os computadores, as organizações são psicológicas. O mundo das percepções é fonte e limite do comportamento humano. A maneira como eu percebo determina a maneira como eu me comporto. Por sua vez, a dimensão normativa – valores, crenças, idiossincrasias pessoais, opções éticas, ou seja, a mentalidade; a dimensão cognitiva – conhecimento, saberes, know-how, ou seja, capacidade; e a dimensão volitiva – necessidades, aspirações, desejos, impulsos, ou seja, vontade, são componentes conceptuais essenciais na percepção e no comportamento do gerente no cotidiano. E, portanto, na escolha e uso das tecnologias e das ferramentas, que assim deixam de serem neutras, assépticas, para estarem a serviço das concepções ideológicas e instrumentais de seus usuários.

A conduta não-lógica é inerente ao ser humano e, portanto, à vida social no mundo das organizações e no universo da sociedade. A dimensão racional do homem desempenha papel limitado e usualmente serve como justificativa e explicação a posteriori para atitudes e comportamentos, decisões e percepções, visões e expressões práticas de valores, conhecimentos, vontades e impulsos que condicionam e determinam o agir de cada um. No dizer de Lévy-Strauss: “a natureza do homem é permanente e universal”. Todos os homens, no tempo e no espaço, se aproximam ou mesmo se igualam nessa forma básica de ser. As manifestações humanas, embora tão distintas e diversificadas, são sintetizadas e convertidas a um núcleo comum do qual se expressa a ação do homem na vida individual e coletivamente em sociedade.

O ser humano não é um ser estritamente racional, como querem os adoradores incondicionais das tecnologias, mas um ser racionalizador. A própria razão humana é racionalizadora. Não pode ser considerada um componente humano original, primitivo e inalterado, porque é determinada pelas opções éticas e morais, pelo caráter e mentalidade, pelos conhecimentos e necessidades, aspirações e visão de mundo de cada um inserido em sociedade em cada momento histórico.

Não somos animais racionais e lógicos como um ser tecnológico, à semelhança da IA ou do Google. No cotidiano, usualmente, damos aparência lógica, racional e sensata a ações e atitudes, comportamentos e decisões que não resistem à menor análise crítica de validação.

O estudo da Administração é um ramo das ciências sociais aplicadas. Vale-se das tecnologias e ferramentas operacionais em suas dimensões adjetivas, funcionais e instrumentais. É preciso pensar a organização como um todo, numa compreensão substantiva, com seus componentes tangíveis e intangíveis, com seus recursos e valores contabilizáveis e não-contabilizáveis. Piso e repiso: a tecnologia não é neutra, está sempre a serviço de quem a utiliza em dado momento, no tempo e no espaço. Só assim, com tal constatação axiomática, poderemos nos afastar do servilismo científico-tecnológico no qual nos encontramos hoje no ensino equivocado predominante de gestão das organizações tanto na academia quanto no mundo dos negócios. É preciso aprender a pensar sem corrimão, ou seja, sem o apoio e a sustentação estritos com o foco central em tecnologias e ferramentas ideologizadas que tenham a pretensão de explicar e resolver o mundo das organizações como se fosse uma homogeneidade única, uma inteireza universal, sem as sutilezas próprias de cada realidade.

Como diz Fernando Pessoa: “navegar é preciso, viver não é preciso”. Parodiando-o: navegar é preciso, administrar não é preciso.

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