O Desejo de Mudança de Paradigma dos Veículos Elétricos

Abordagem Psíquica

O veículo elétrico surge como um símbolo multifacetado que conjuga inovação tecnológica, status social e mobilidade. No entanto, essa transição em moldes psíquicos, não se dá sem resistência. Os consumidores enfrentam o ímpeto de abandonar veículos movidos a combustíveis fósseis, que, historicamente, foram e ainda são símbolos de conquista pessoal, associados a ícones de poder e liberdade. Logo, os pilares dessa percepção proposta de mudança, revela um embate entre a preservação de símbolos culturais e a necessidade de adaptação aos novos paradigmas da sustentabilidade, em um claro embate pelo recalcamento do prazer imediato. Mezan, (1990, 404) ao responder a sua própria indagação sobre o desejo, mostra a dialética característica do desejo — expressado pelo Id, sempre pronto a obter prazer imediato. E, pelo recalcamento do próprio desejo, função do superego. Ante a “contenta”, como o desejo se expressa? Precisamente pelas fantasias. São elas que constituem a realidade psíquica “real”, são as fantasias inconscientes que têm o privilégio de serem compatíveis com à realidade “material”. Mas, o desejo de consumir é inerente à própria vida, sustentando a existência biológica de todos os seres. Porém, no caso do ser e humano, o ato de consumir transcende em muito o plano meramente físico, adentrando o complexo cenário da vida em seus meandros psíquicos, expressos de forma socioculturais.

Para compreender melhor esse fenômeno, recorre-se à obra de Zygmunt Bauman, sociólogo polonês que, em Modernidade Líquida (2000), nos leva a refletir sobre a transição de uma sociedade sólida e regida por preceitos iluministas, para uma sociedade líquida, caracterizada pela fluidez e pela instabilidade de valores outrora tidos como fixos.

Freud em suas considerações em Mal Estar da Civilização (1930) afirma ser sua intenção a de

(…) representar o sentimento de culpa como o mais importante problema no desenvolvimento da civilização, e de demonstrar que o preço que pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma perda de felicidades pela intensificação do sentimento de culpa” (1930/1974, p. 158).

Em relação à organização social, a fragilidade crescente do Estado ao longo do tempo, levou-o a adotar modelos de gestão típicos das multinacionais, mas, tal movimento, leva o Estado a perder seu papel como mantenedor da ordem social. O Estado, que antes representava estabilidade e previsibilidade, hoje vacila, transformando-se em uma instituição ineficiente, subjugado pela lógica do mercado global. A internet é outro agente de mudança rápida, por introduz uma nova dinâmica de comunicação, tornando os fluxos de informação mais rápidos e voláteis, potencialmente capazes de gerar desordens globais em virtude de fake news ou pela disponibilidade imediata de comportamentos inesperados de líderes mundiais, capazes inclusive, da desestabilização do mercado financeiro internacional.

Como se deu essa passagem? A modernidade líquida que Bauman descreve se deu graças ao “derretimento” de antigas bases sólidas, pilares sociais paradigmáticos se tornam em um mundo permeado por constantes mudanças e incertezas. Bauman considera que essa passagem acontece movido pela lógica do consumismo, onde todos e tudo é orientado como produto

Podemos considerar a questão pelo viés filosófico, essa arquitetura fluida já havia sido intuída por pensadores que se opuseram ao racionalismo iluminista de Kant. Schopenhauer, por exemplo, em sua obra O Mundo como Vontade e Representação (1819), sugere que a vida humana é um ciclo contínuo de desejos e frustrações, onde o desejo, uma vez satisfeito, rapidamente se transforma em tédio e insatisfação.

Nesse mesmo campo, Jean-François Lyotard, um dos principais expoentes da filosofia pós-moderna, propõe uma desconstrução do sujeito racional iluminista. Em sua visão, a subjetividade humana é um fluxo contínuo de energias e desejos, moldado por forças inconscientes, como bem elucidado por Freud. Lyotard enfatiza que a razão unitária não governa o sujeito, que, em vez disso, está submetido a uma constante mobilidade, impulsionado por desejos e pulsões que o levam de um objeto a outro.

Lyotard também oferece uma reflexão sobre o papel da ciência na contemporaneidade, afirmando que a ciência se encontra a serviço do mercado, onde o princípio de eficiência domina o campo discursivo e prático. A ciência contemporânea, longe de buscar uma verdade universal, molda-se pelas demandas do mercado, buscando incessantemente produtos e soluções que alimentem a lógica capitalista.

Esse discurso de louvor a eficiência permeia todas as esferas da vida, difundindo uma metaética ao cotidiano, onde somos chamados a desempenhar múltiplos papéis — como bons cidadãos, pais, profissionais e, claro, consumidores. Contudo, a modernidade líquida não oferece segurança ou estabilidade. Ao contrário, coloca o sujeito à mercê de forças imprevisíveis, em uma realidade onde tudo e todos se tornam mercadorias a serem consumidas. Mesmo o sujeito, quando busca o serviço da análise freudiana, descobre que o desejo é sempre um território movediço, onde a satisfação é ilusória e temporária, e novos problemas emergem continuamente, mantendo o ciclo de insatisfação.

Assim, a pós-modernidade, tomada como a modernidade líquida, considera o ideal da liberdade o grande investimento capaz de trazer satisfação do desejo prazer, mesmo porque, não há mais no que investir, pois as promessas do iluminismo, bem como todas as propostas até agora apontadas como definitivas fontes de satisfação social, não aconteceram, ao menos para a grande maioria das pessoas. Assim, essa liberdade, ao contrário do que se imagina, não conduz à plenitude e a felicidade; ela se traduz em angústia — chamado de o mal do século, pois, ser livre significa tomar decisões, confrontar e controlar os próprios desejos e, inevitavelmente, encarar a insatisfação inerente à condição humana constante de vazio e falta.

A eletrificação automotiva, impulsionada pelo “efeito BYD — GWM”, ilustra de maneira clara o desejo de mudança de paradigma no setor dos veículos elétricos. Esses veículos emergem como símbolos de inovação, status social e responsabilidade ambiental, mas, a transição não ocorre sem resistência, como já dito, o apego cultural aos veículos movidos a combustíveis fósseis, símbolos inequívocos de poder e liberdade, gera um embate entre o desejo de preservação desses ícones e a necessidade premente de adaptação às novas exigências vitais da sustentabilidade.

Do ponto de vista freudiano, essa resistência pode ser interpretada à luz do conceito de mal-estar na civilização, desenvolvido por Freud em O Mal-Estar na Civilização (Freud, 1930/1974). Freud argumenta que o progresso tecnológico, embora traga benefícios inegáveis, isso é, disponibilize o prazer por satisfazer desejos, está intimamente ligado a novas formas de frustração, uma vez que a civilização impõe a repressão de impulsos primários em prol do coletivo. A transição para veículos elétricos reflete esse paradoxo: o desejo de controlar o impacto ambiental e tecnológico é uma tentativa de solucionar tensões externas, mas, conforme Freud propõe, essa busca por controle está fadada a gerar novas ansiedades e frustrações.

Freud discute, no texto mencionado, como o avanço da civilização exige um constante sacrifício dos desejos individuais em prol do bem-estar social (Freud, 1930/1974, p. 77). A adoção de veículos elétricos exemplifica esse sacrifício: consumidores são convidados a abandonar não apenas uma tecnologia já consolidada, mas também uma série de significados culturais profundamente arraigados. Esse fenômeno, de acordo com Freud, demonstra como a civilização cria novas demandas sobre os indivíduos, que, ao serem forçados a adaptar-se, vivem um misto de desejo e resistência.

Além disso, Freud sugere que a mudança de paradigma, por si só, carrega consigo uma ilusão de satisfação. A transição para veículos elétricos, promovida por grandes corporações como BYD e GWM, promete uma solução para os problemas ambientais e energéticos. Entretanto, Freud alerta que as promessas de felicidade resultantes do progresso material raramente são cumpridas de maneira plena. Ao buscar soluções externas para problemas internos, a civilização acaba gerando novas fontes de mal-estar (Freud, 1930/1974, p. 84). A eletrificação automotiva, nesse sentido, apresenta-se como uma promessa de alívio para a crise ambiental, mas não aborda as ansiedades mais profundas e intrínsecas ao ser humano, que, de acordo com Freud, persistem independentemente do avanço técnico.

Por fim, Freud reflete sobre a relação entre tecnologia e progresso no contexto civilizatório. Ele observa que o progresso técnico, ao ampliar o controle sobre a natureza, oferece conforto e benefícios tangíveis, mas não consegue eliminar o mal-estar inerente à civilização, em suas palavras, proporciona apenas: “(…) em suma, constituir a tarefa econômica de nossas vidas (Freud, 1930/1974, p. 117). A eletrificação dos automóveis pode ser vista como uma tentativa de melhorar a relação da humanidade com o meio ambiente, mas, de acordo com a análise freudiana, tal avanço traz novas formas de angústia — como o impacto econômico da transição ou as questões éticas em torno da produção de bateria, o progresso tecnológico sempre estará associado a novas formas de insatisfação, mantendo o ciclo de frustração em funcionamento.

Esse cenário, no qual o progresso técnico não elimina o mal-estar, mas o transforma, se encaixa perfeitamente na análise freudiana da condição humana. O desejo de mudar o paradigma automotivo é uma expressão contemporânea do conflito entre o progresso material e as limitações psicológicas que Freud tão profundamente explorou. Como ele sugere em O Mal-Estar na Civilização, a busca por novas formas de satisfação sempre será acompanhada por novas formas de frustração, pois a natureza do desejo humano é insaciável e dinâmica. “É bastante concebível que tampouco o sentimento de culpa produzido pela civilização, seja ou apareça como uma espécie de mal-estar, uma insatisfação, para o qual as pessoas buscam outras motivações” (Freud, 1930/1974, p. 160), oferecidas pelo mercado.

Referências Bibliográficas:

  • BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Cambridge: Polity Press, 2000.
  • Freud, S. (1930/1974). O Mal-Estar na Civilização. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XXI, pp. 69–148). Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda.
  • GUALANDI, Alberto. Lyotard. São Paulo: Estação Liberdade, 2007.
  • LYOTARD, Jean. Rudiments païens. Paris: UGE, 1977.
  • MEZAN, Renato. Freud Pensador da Cultura. São Paulo: 5º Ed. Brasiliense S/A, 1990.
  • SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. 3. ed. São Paulo: Unesp, 2005.

*Adm. Laércio Martins é membro da Comissão de Marketing do CRA-RJ.

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