A saúde contaminada
A presente nota tem por objetivo abordar a questão da contaminação por HIV em pacientes transplantados, registrando que este é um problema que transcende a esfera da saúde, envolvendo também aspectos políticos e administrativos.
A Política Nacional de Transplantes de órgãos e tecidos fundamenta-se na Legislação, conforme Leis nº 9.434/1997 e nº 10.211/2001. As diretrizes dessa política incluem a gratuidade da doação, a beneficência em relação aos receptores e a não maleficência (dano) em relação aos doadores vivos. Frequentemente se destaca a grandiosidade do Programa Estadual de Transplante no Rio de Janeiro, onde ocorreu a contaminação, a qual é descrita como um caso sem precedentes.
Conforme informações, nas mídias, o Ministério da Saúde teria revogado em 2023, duas portarias fundamentais para garantir a segurança e a qualidade dos transplantes no Brasil, que tratavam sobre o Programa de Qualidade no Processo de Doação e Transplantes – Qualidot¹. No entanto, essas revogações não tratam das etapas de exames laboratoriais realizados em potenciais doadores de órgãos ou do controle de qualidade desses procedimentos.
Segundo o infectologista Francisco Cardoso, as revogações das medidas não têm justificativas técnicas sustentadas e teriam contribuído diretamente para a “fragilização das responsabilidades compartilhadas entre União, Estados e Municípios e ampliaram as possibilidades de corrupção dentro do setor”.
Cabe a nós, profissionais de administração em saúde, comentar a falta de transparência e responsabilização em casos como este. Embora o evento tenha ocorrido em 13 de setembro/24 deste ano, somente foi reconhecido pela autoridade federal competente em 16 de outubro/24 do mesmo ano, com a justificativa de que a investigação não foi realizada antes por falta de evidências.
A Secretaria Estadual de Saúde do RJ informou ter tomado ciência da situação em 10 de setembro/24, quando um paciente transplantado apresentou sintomas neurológicos e testou positivo para HIV. Esse paciente não possuía o vírus anteriormente e havia recebido um transplante de coração em janeiro.
Durante o hiato entre a contaminação e o reconhecimento do problema, diversas ações podem ocorrer, incluindo a ocultação de provas. A ausência de relatórios públicos e a omissão de informações sobre falhas no sistema de transplantes podem impedir que as responsabilidades sejam assumidas e que as correções necessárias sejam feitas.
Observa-se que, em muitos casos, autoridades e gestores de saúde que cometem erros ou negligenciam a segurança nos transplantes não são devidamente responsabilizados, perpetuando o problema.
Há Unidades de Saúde do Estado que contam com laboratórios capacitados, prestando serviços de qualidade, em apoio ao Programa Estadual de Transplante. Entretanto, a prática da terceirização favorece a prestação de serviços em locais sem qualidade e com extrema falta de preparo gerencial, onde a responsabilidade técnica recai sobre indivíduos sem a legítima competência, na busca por ganhos financeiros.
Uma análise desse cenário revela a má gestão e oportunismo nos modelos criados para o gerenciamento da saúde vista como um produto disponível para venda.
A Fundação Saúde do Estado do Rio de Janeiro manteve pagamentos ao laboratório PCS Lab. Saleme em setembro/24, mesmo após o conhecimento da produção de laudos errados que resultaram na infecção por HIV de seis transplantados. Durante todo o mês, a fundação pagou R$ 857 mil ao laboratório, o que a Fundação Saúde informou que os pagamentos “são referentes às despesas realizadas em meses anteriores”. No dia 21 de outubro de 2024, todos os diretores da Fundação Saúde colocaram seus cargos à disposição. Os pedidos de exoneração foram aceitos, e os diretores foram exonerados de seus respectivos cargos, pelo Governador do Estado do RJ.
É lamentável observar a falta de percepção em relação à saúde dos pacientes, que, após um longo período de espera por um transplante, agora enfrentam o fantasma da contaminação por HIV e suas consequências, além das reações adversas ao próprio transplante.
A Secretaria Estadual de Saúde, confirmado pela Fiocruz, informa que um dos seis pacientes infectados pelo vírus HIV após transplantes de órgãos no Estado do Rio de Janeiro encontra-se internado em estado grave. Trata-se de um homem de 75 anos, que passou pelo procedimento de transplante de fígado no mês de maio do atual ano. O paciente está sob cuidados médicos no Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
A questão política relacionada à contaminação por HIV em transplantados está profundamente atrelada à má gestão. Para enfrentar esses desafios, é fundamental que os governos implementem políticas públicas sérias, promovam maior transparência e priorizem a questão da responsabilização por esse evento de forma digna e criteriosa. A falta de ações coordenadas entre diferentes setores também dificulta a criação de um sistema seguro e eficiente, que possa proteger os pacientes de riscos evitáveis, como a contaminação por HIV. Isso não pode ser considerado um evento que possa ser tratado um mês após sua ciência por falta de evidências: onde fica o rastreamento e as práticas de controle dos laboratórios e o que fazem seus responsáveis técnicos?
Em relação ao caso em pauta, observa-se que o papel da administração hospitalar é relevante junto a equipe multidisciplinar atuando com:
Políticas de Saúde claras e bem estruturadas dentro das instituições de saúde para garantir que todos os protocolos de prevenção sejam seguidos.
Gestão de Riscos com práticas administrativas que possam identificar, monitorar e minimizar os riscos nos processos e no controle.
Controle de Qualidade e Segurança com a gestão da qualidade dentro das instituições, garantindo que as práticas sejam seguras, com base em protocolos bem definidos, e auditadas regularmente.
Coordenação Interdisciplinar como necessidade para uma gestão eficiente que promova a comunicação e colaboração entre médicos, enfermeiros, farmacêuticos, e outras equipes envolvidas nos processos para reduzir/mitigar os riscos.
Monitoramento e Avaliação no desenvolvimento de sistemas de monitoramento pós-procedimentos, acompanhando a saúde dos pacientes e garantindo que não ocorram falhas no sistema de prevenção como um todo.
Regulamentações e Compliance mantendo a conformidade com normas nacionais e internacionais, garantindo que a gestão administrativa siga todas as regulamentações estabelecidas para minimizar o risco de contaminação.
A saúde está contaminada pela má gestão, desaguando diretamente naqueles que dependem de um tratamento público confiável. No caso em questão, o remédio não terá a eficácia necessária para atuar junto a esses pacientes, resultando em mais um caso que será tratado como tantos na Saúde do Rio de Janeiro.
¹ Qualidot – Programa de Qualificação do Sistema Nacional de Transplantes por meio da avaliação de critérios e indicadores com o objetivo de reclassificar todos os centros transplantadores do país, para aperfeiçoar os mecanismos de controle relativos aos resultados dos transplantes.
*Adm. Fatima Ribeiro – Coordenadora da Comissão Especial de Administração de Serviços de Saúde
Referências:
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/10/21/paciente-infectado-hiv-transplante.ghtml