Limites aos excessos do capitalismo – Parte 2

A Primazia aos Acionistas

A má distribuição da riqueza, as iniquidades produzidas pelas macrocorporações, a poluição do meio ambiente e todas as demais mazelas deste primeiro quartel de século são apenas sintomas, febres e calafrios de uma economia pervertida, que não está, primacialmente, a serviço do bem comum. A doença subjacente decorre da primazia conferida aos acionistas. A organização coloca toda a sua energia para garantir lucros crescentes aos acionistas, pouco se importando com quem paga o preço de tal privilégio.

As organizações, de fato, detêm excessivo poder no mundo globalizado. O que não se percebe é o poder invisível a que a riqueza dos acionistas majoritários submete as organizações. No interesse de tornar o rico mais rico ainda, as organizações terminam por impor a todos nós verdadeiros tributos privados decorrentes de sua crescente taxa de ganância. E, assim, o poder financeiro constituído pelos acionistas transforma-se em uma aristocracia econômica. A contraditá-la é preciso que surja incontinenti uma nova democracia econômica.

As organizações concentram-se inexoravelmente, mais do que nunca, no ganho dos acionistas, mesmo que isso signifique a exclusão de todos os demais valores que lhe possam ser contraditórios, sejam eles dos empregados, do meio ambiente ou da participação acionária socializada.

A crise econômica mundial de 2009, iniciada com a falta de liquidez das subprimes no mercado imobiliário americano, escandalizou a opinião pública de todo o mundo ao aportar remunerações milionárias absurdas aos maus gestores dos bancos, das seguradoras e das corretoras em falência, tudo sustentando pelo erário público.

O jornal Le Monde, na edição de 12 de janeiro de 2010, traz importante matéria em que afirma que o capitalismo francês subsiste nas mãos de um clube fechado de acionistas proprietários. Noventa e oito pessoas representam 43% dos direitos de voto nos conselhos de Administração, o que se agrava mais ainda pelo alto grau de relações familiares e consanguíneas entre elas.

O capitalismo francês é um sistema oligárquico nem um pouco diferente da aristocracia de acionistas dominante em toda a economia mundial.

Seríamos capazes de imaginar uma economia globalizada em que as organizações pertençam às pessoas que nelas trabalham? Em que o conselho diretor requeira o exercício de obrigações fiduciárias a todos os que contracenam com a empresa, dos empregados à comunidade, como aos proprietários ausentes?

Quando julgamos que uma organização obteve bom desempenho no balanço que apresentara, queremos dizer que os seus acionistas obtiveram bons ganhos. Não consideramos que, muitas vezes, em contrapartida, a comunidade em que se localiza a fábrica fechada para garantir melhores resultados de desempenho foi devastada com a perda de empregos e de renda, que o downsizing possa ter massacrado os empregados restantes por sobrecarga de trabalho. E ainda dizemos: a organização está muito bem. E tais mazelas não aparecem nos ditos balanços sociais, hoje tão em moda nas organizações.

Os escândalos contábeis de empresas em todo o mundo, a começar, por exemplo, com a Worldcom, a Erron, a Parmalat, o Lehman&Brothers, a AIG e a Merril Lynch são ilustrativos sobre o quão obsoleto está o atual modelo empresarial prevalecente na economia mundializada. A cobiça dos dirigentes voltada para os interesses exclusivistas dos acionistas é uma das facetas disfuncionais da excessiva concentração de poder nas mãos de tão poucos.

Não conseguimos avaliar a transferência dos ganhos de produtividade da organização para o aumento dos ganhos dos empregados como o indicador de sucesso da organização. Ao contrário, os ganhos dos empregados são vistos como perdas ou gastos para a organização, o que revela o conceito inconsciente de que os empregados não são verdadeiramente parte da organização. Eles não têm qualquer direito sobre a riqueza que criam com o seu trabalho, nada a dizer na governança corporativa, nenhuma razão para participar com voto do conselho diretor. Eles não são cidadãos da sociedade corporativa , apenas pessoas submetidas à sua autoridade. Como no império romano, não são sequer patrícios com direito a voto, apenas integrantes da força de trabalho. Contraditoriamente, é verdade, são eufemisticamente chamados de parceiros ou de colaboradores.

Imaginam que isso possa ser uma lei natural do mercado. É mais precisamente o resultado da distorção do conceito de estrutura da governança corporativa, já que viola os princípios do verdadeiro liberalismo econômico.

No livre mercado, todos negociam para obter o que puderem, mas ficam com o que ganham. Nas organizações corporativas, um pequeno grupo fica com o que os demais obtêm como produto de seu trabalho. Já os acionistas têm a propriedade dos meios de produção, isto é, são os donos das empresas. A eles é permitido contribuir muito pouco, mas ficam com a parte do leão. E assim os ricos ficam cada vez mais ricos enquanto a renda dos empregados fica estagnada ou se degrada.

Toda a história do capitalismo até agora o faz intrinsecamente um sistema a serviço do capital. Até os primórdios do século XX, os governos serviam aos interesses das monarquias. Não foi necessário livrar-se do governo para se livrar da monarquia. Bastou apenas mudar as bases em que a soberania dos governos se fundamentava. Nós devemos agora fazer algo semelhante com as organizações, assegurando direitos compartilhados de soberania econômica entre a comunidade, os trabalhadores e os proprietários dos bens de capital.

É preciso agora, portanto, derrubar privilégios absurdos da aristocracia financeira, o que se fará através do desenvolvimento de uma nova ordem mundial essencialmente democrática.

O que temos tido até hoje é o modelo de um capitalismo aristocrático. Devemos abraçar agora uma nova visão de capitalismo democrático, não mais como um sistema a serviço exclusivo dos proprietários do capital, mas um novo sistema em que a todas as pessoas seja permitido compartilhar os bens da riqueza, de acordo com a sua produtividade e participação, e no qual o natural capital ambiental e da comunidade seja liminarmente preservado.

A Exclusão Social

Os benefícios do capitalismo globalizado não são equitativamente distribuídos no conjunto da população e das nações, tornando ainda mais desigual a distribuição da riqueza.

Duas classes emergentes surgem da globalização econômica: os novos milionários empreendedores (os de tecnologia de ponta e os financistas) e o novo proletariado lúmpen, recém-egresso das zonas rurais, absolutamente incapazes de conviver na sociedade do conhecimento.

É a crise da exclusão social que se agrava intensivamente nas cidades de todo o mundo. As disparidades econômico-sociais serão cada vez mais gritantes, enquanto o terrorismo buscará, nas massas desvalidas, o seu exército de adeptos, e utilizará e desfrutará de conhecimentos e acesso a tecnologias inimagináveis, a custos decrescentes.

É preciso uma nova ordem econômica mundial radicalmente democrática, em que o pobre compartilhe dos ganhos do crescimento e o rico também partilhe dos ônus das crises. É simplista – e porque não dizer hipócrita – a noção de que a melhor forma de ajudar o pobre é fazer a economia crescer. A distribuição de renda não pode ficar à espera da geração da riqueza, mas se efetivar concomitantemente. A hipocrisia se assenta na falsa afirmação de que só se pode distribuir o que se produz, que é preciso produzir antes para distribuir depois.

O desemprego não deve ser encarado simplesmente como uma estatística, uma contagem do número de vítimas não intencionais produzidas pela luta contra a inflação ou pela modernização dos processos de trabalho nas organizações. Os desempregados são seres humanos, com famílias, vidas de dedicação ao que fazem, com sonhos e esperanças destruídas pelas políticas econômicas efetivamente impostas pela atual ordem econômica mundial, absolutamente insensível aos dramas humanos ocasionados aos países periféricos e às crescentes áreas marginais imigradas existentes nas periferias dos países desenvolvidos.

Finalmente, parece que a atual crise econômica mundial, que se desenrola desde 2009, começa a sensibilizar os grandes mandatários das nações para a evidência de que os organismos internacionais, soi-disant de ajuda, há muito deixaram de servir aos interesses econômicos mundiais – razão de ser de suas existências – para passarem a servir exclusivamente aos interesses financeiros internacionais concretizados na aristocracia dos acionistas majoritários das corporações empresariais. É a ideologia de mercado levada ao paroxismo: os mercados não falham, os governos sim. A crise pela qual passa a Grécia é a ilustração viva e recente desta realidade.

A expressão mais candente da degradação da dignidade e da autoestima do trabalhador está na sua exclusão do processo de desenvolvimento. O desemprego é a expressão máxima dessa degradação, por dar absoluta concretude à exclusão social. Ninguém deve ficar excluído da construção social. Todos têm o direito de nela estar e nada mais degradante do que o sentimento de exclusão do mercado de trabalho. O maior malefício do desemprego não é de ordem física ou material, mas de ordem moral. Não apenas pela aflição que ocasiona, mas pelo ódio, rancor e medo que suscita entre os desempregados.

A ação de gestão no mundo online não sensibiliza diretamente os responsáveis pelas decisões em função do distanciamento que impõe aos que são afetados pelos resultados do que se decide. É como na guerra moderna: quem aperta o botão da bomba não tem qualquer contato com as suas vítimas. Assim também no mundo do trabalho: aqueles que tomam as decisões de demissão não chegam sequer próximo do cotidiano dos demitidos.

Produzir a ruptura ou a descontinuidade dessa trajetória histórica do capitalismo, prenhe de iniquidades, não deve ser a resultante de um fatalismo moralista, mas um ato de inteligência que conduza a humanidade a um novo marco civilizatório de convivência, com maior democracia, fraternidade e justiça social.

Nas crises vicejam as oportunidades. O atual momento mundial oferece condições objetivas invulgares para a deflagração desse novo tempo, em que todos devem construir e muito se empenhar para merecê-lo. Não pode ser apenas a decisão do G8 ou do G20, mas a busca engajada e comprometida de todos.

De um mundo originalmente dominado pela monarquia e pela aristocracia, a civilização do século XX, e remanescente nestes primeiros anos do século XXI, concretizou o novo mundo da democracia, com formidáveis avanços. No entanto, temos democratizado apenas os governos, a dimensão política da voz e da vez do cidadão no campo de seus direitos políticos. É impostergável agora efetivar a democracia econômica! A dificuldade de se limitar a influência da riqueza sugere que ela deva ser limitada. Uma sociedade democrática não pode mais tolerar a acumulação ilimitada do capital.

A igualdade civil e social pressupõe uma equitativa igualdade econômica. É claro que o princípio da igualdade estará bem melhor atendido não por um igualitarismo naive de renda, mas pela imposição de limites ao imperialismo do mercado, que transforma até os bens sociais em mercadorias.

O que está em questão é o controle do dinheiro fora de sua esfera, já que esse se infiltra com poder e influência não só na primazia dos bens econômicos, mas decisivamente na obtenção de privilégios sociais e no controle dos direitos civis.

Adm. Wagner Siqueira
CRA-RJ nº 01-02903-7
Presidente

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